quarta-feira, 27 de abril de 2016

Praia carioca tem até sacolé de espumante

                  

Venda crescente em quiosques da orla, vinícola do sul premiada lá fora, rótulos indicados por especialistas, disputa pelo nome champagne: um panorama do consumo e da produção do ‘borbulhante’ nacional, que nos últimos anos cresceu no gosto popular e conquistou as praias.

No Rio é só ir a praia e escutar “picolé da Morena!”. Outro vendedor oferece um queijo coalho na brasa, quentinho e proibido. Sob o sol a pino, em plena sexta-feira no Posto 12, no Leblon, Ruan Nemeczyk, de 27 anos, caminha apenas com um sorriso no rosto e isopor a tiracolo. O que será que ele vende?

— Se eu tivesse esse dom de criar bordão que eles têm... Mas prefiro apresentar o produto com calma para o cliente — afirma ele, paramentado com blusa de manga comprida e proteção UV, boné, óculos escuros e pegador vermelho de silicone. — Roupa de árabe não combinaria, né?

A cerimônia tem motivo. O produto vendido ganhou as areias e a mesa brasileira de mansinho, perdendo o nariz empinado e o sotaque gringo. O espumante nacional cresceu em qualidade e volume de vendas, superando rótulos estrangeiros. Deixou de estar restrito a eventos especiais e passou a acompanhar banho de mar, churrasco e outras comemorações mais prosaicas.

Morador da Mangueira, Ruan criou há um ano o chandonlé, nome de batismo para o sacolé de Chandon. Ainda que a técnica de bater o espumante com leite condensado e frutas congeladas possa ser considerada um sacrilégio com as delicadas borbulhas da bebida, a invenção tem feito sucesso nas areias do Leblon. O carioca deixou seu emprego de contador e investiu na veia empreendedora: lançou delivery, criou carrinho para casamentos e festivais de food truck e abre no próximo mês uma champanharia no Cadeg, em Benfica.

— O Rio sempre foi a cidade da cerveja, mas percebi que isso começou a mudar na praia. O espumante é uma bebida refrescante que combina com nosso clima. O carnaval confirmou isso. A gente saía dos blocos zerados e as pessoas pediam para voltar — conta ele, que não revela o volume de vendas na folia, mas diz que foi preciso contratar dez vendedores.

Só podia dar em dobradinha

A dobradinha carnaval e espumante é o mote do bloco Espumas e Paetês, que ocupa há sete anos uma praça em Laranjeiras no Sábado Magro, que antecede o sábado de carnaval. A analista de sistemas Lilian Rodrigues fundou a agremiação depois de fazer cursos de enologia e participar de um grupo de degustação. As marchinhas são entoadas por um coral à capela e cada folião uniformizado com a camiseta do bloco ganha uma taça para uma dose de espumante. Os integrantes podem levar suas garrafas e gelar num isopor comunitário.

— Já tivemos até 800 pessoas, mas neste ano não conseguimos nos reunir, apesar das queixas dos foliões. É cada vez mais difícil colocar o bloco na rua. Os blocos têm patrocínio de cervejaria. Não tem como competir. Mas o nosso é o único em que o banheiro fica limpo e sem fila — brinca. — Se vou à praia no fim de tarde, levo meu espumante gelado. É uma bebida que cai bem com todos os ambientes do Rio.

Entre os 309 quiosques administrados pela Orla Rio, 70 oferecem espumante em seu cardápio, a maior parte concentrada no trecho Copacabana-Leme. Do outro lado do calçadão não é diferente. O cinco estrelas Copacabana Palace, por exemplo, lançou no início do mês seu rótulo próprio de espumante brut e rosé, produzido na Serra Gaúcha, para ser servido no brunch do restaurante Pérgula, aos domingos.

— Cada vez mais o turista e o carioca estão procurando sair da mesmice de chopes e caipirinhas — diz Daniele Barreto, dona do quiosque Coisa de Carioca, que fez campanha de bonificação entre os funcionários para quem mais vendesse a bebida.

Crescimento constante

Segundo o Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), desde 2015, o número de estabelecimentos que incluiu espumantes no cardápio cresceu 15% no estado. Fundada em 2003 em Porto Alegre, a Ovelha Negra foi a primeira champanharia instalada no Brasil. A ideia dos sócios, todos leigos até então no ramo de bares, surgiu durante uma viagem a Barcelona, inspirada nas caves locais. Hoje, a filial no Rio, em Botafogo, tem 80% da carta dedicada a rótulos nacionais.

— Sempre achamos que o espumante brasileiro tinha mais potencial que o vinho. Mas na época até as próprias vinícolas duvidavam de um projeto assim — conta o sócio Daniel Giacoboni.

Os vastos campos de videiras, com roseiras nas extremidades para servir de indicador contra pragas, poderiam ser confundidos com vinícolas na França ou Itália. Mas em meio à paisagem comum ao mundo dos vinhos se destaca a imponente araucária, cartão-postal da região Sul do país, responsável por 90% da produção nacional.

É nesse cenário que está em curso uma pequena revolução, a segunda de que se tem notícia ali: se nos anos 1970 e 1980 as vinícolas gaúchas adaptaram a produção do vinho de mesa para os finos, agora, pouco a pouco, vão apostando mais na produção de espumantes do que na de tintos, rosés e brancos.

Na vinícola Don Giovanni, em Pinto Bandeira, a produção de espumantes já superou a de tintos. A localidade na Serra Gaúcha é considerada “o” solo para espumantes, devido à altitude (700 metros acima do mar) e ao solo drenante de origem vulcânica.

— Tecnicamente, viu-se que a cada safra conseguimos colher uma boa uva para espumante. Historicamente, não tivemos safras ruins para base de espumante. Para vinho, temos duas a três safras boas por década. É a vocação do solo. Todo ano, a uva atinge a graduação de açúcar e a acidez perfeita — explica o gerente Daniel Panizzi.

Segundo levantamento do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), os espumantes de vinícolas gaúchas tiveram aumento de vendas de 11,9% em 2015, com 18,7 milhões de litros. Entre os denominados moscatéis, com teor de açúcar mais elevado, o percentual foi ainda maior, 15,8%. Já nos tintos e brancos, viu-se um movimento contrário: as vendas ficaram praticamente estagnadas, com alta de 0,9%, totalizando 227,3 milhões de litros. Ainda que o resultado não se repita em 2016 em função do aumento dos custos de produção, da redução no volume da safra e das mudanças na tributação, a tendência está estabelecida.

— Hoje, é muito mais interessante vender espumante do que vinho. O limite de preço dos vinhos é o estabelecido por Chile e Argentina. Com uma incidência de impostos maior e um custo de produzir também, a gente não consegue competir em preços com nossos vizinhos. Acontece que o teto de preço dos espumantes é o que vem da região de Champagne, na França, que é bem mais alto. Ainda temos muito o que crescer — aponta Daniel Geisse, primogênito da família Geisse.

A vinícola, também localizada em Pinto Bandeira e eleita “a melhor do Novo Mundo” pela revista “Wine Entusiast”, um Oscar do setor, registrou R$ 12,5 milhões de faturamento em 2015. E hoje tem três vezes mais reservas de compra do que é capaz de produzir.

Mas não é uma questão de simples matemática. Diferentemente do que acontece com os vinhos, os espumantes venceram o preconceito do rótulo made in Brazil. Cerca de 80% do consumo nacional dos borbulhantes vêm de vinícolas nacionais, enquanto no vinho fino a situação é inversa, com apenas 20% de produtos locais respondendo pelo consumo total. Os prêmios conquistados por casas como Geisse, Valduga e Salton — líder de vendas no país há dez anos, após desbancar a Chandon do posto com produtos mais baratos — alçaram o espumante canarinho ao mesmo nível de qualidade de seus pares gringos. E o enoturismo da região ajudou a democratizá-lo dentro do país.

— A aceitação vem da qualidade. E, nesse particular, é preciso destacar a contribuição de alguns enólogos no desenvolvimento do espumante brasileiro: Adolfo Lona (argentino), Mario Geisse (chileno) e Philippe Mével (francês, da Chandon). Embora estrangeiros, todos vivem há mais de 20 anos no Brasil e interpretaram com maestria o grande potencial do país para a elaboração de espumantes de qualidade. Outro fator é o preço: todas as vinícolas do Sul produzem espumantes, e a saudável concorrência manteve os preços num patamar razoável para esse tipo de produto. Não se pode dizer o mesmo para os tintos — analisa Célio Alzer, sommelier e consultor de vinhos.
Espumante em alta: Do sorvete na praia ao drinque no hotel cinco estrelas, o ‘borbulhante’ nacional nunca esteve tão em alta - Fernando Lemos

O que se encontrou na Serra Gaúcha foi vocação para espumantes, o chamado terroir: clima frio, chuvoso, solo com drenagem e com pouca insolação compõem características adversas para tintos, mas são vantagem no caso dos borbulhantes ao criar uma acidez elevada.  É basicamente o que acontece em Champagne.

— O espumante é vinho, e vinho é um produto da terra. Não é um produto turístico para ficar passeando pelos mares. O brasileiro tem que assumir que o vinho é um patrimônio desse país. Não é um produto regional, como hoje ele está interpretado — defende Rinaldo Dal Pizzol.

A onda dos brasileiros também chegou a reboque do onipresente “raio gourmetizador”. É que os rótulos nacionais são mais frutados, leves e com menor nível de açúcar do que o tradicional champanhe.

— Dos vinhos, o espumante é um dos mais versáteis. É possível fazer toda uma refeição só acompanhado por eles, embora a graça seja ter variedade. Em dúvida, uma taça de borbulhas resolve — sugere Luiz Horta, colunista do GLOBO.

Na disputa para usar o nome champagne, uma empresa se reinventa

Mais de dez mil quilômetros separam Garibaldi, no Rio Grande do Sul, e Champagne, na França. Mas ambas as cidades têm um orgulho em comum: o champanhe. É por aqui que se produz o único espumante a levar o nome da região francesa, protegido por uma Indicação de Procedência. Explica-se: em 1974, vinícolas francesas entraram com uma ação contra quatro empresas gaúchas que levavam o termo no rótulo. O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a ponderação, e as vinícolas continuaram com a denominação. A única em atividade é a Peterlongo, com o slogan “O 1º Champagne do Brasil”.

A bebida começou a ser comercializada pelo fundador, Manoel Peterlongo, em 1915. Ganhou notoriedade com Getúlio Vargas nos anos 1930, quando se tornou a bebida das cerimônias oficiais do governo federal, figurando de batismos de navios ao jantar de boas-vindas da Rainha Elizabeth II.

O declínio aconteceu nas décadas seguintes, com a abertura do mercado a espumantes internacionais e mudanças no comando da empresa que priorizaram produtos menos nobres. A marca perdeu o glamour. Até o ano de 2002, quando a página começou a ser virada. O paulista Luiz Carlos Sella, ex-taxista que fez fortuna assumindo empresas em dificuldade e as vendendo posteriormente, comprou a vinícola e retomou o foco nos espumantes premium. Hoje, apenas 0,5% da produção, que inclui sucos, vinhos de mesa e espumantes estilo charmat, leva no rótulo Champagne. A consultoria de um enólogo, cujo nome é guardado ainda a sete chaves, vai reformular a linha de produção.

— Quando entrei, o endividamento era maior do que o patrimônio. Meu objetivo era ficar até os 100 anos da empresa (em 2015). Mas a história não tem preço — afirma Sella.

Fonte Ela

Nenhum comentário:

Postar um comentário