Venda crescente em quiosques da orla, vinícola do sul premiada lá fora, rótulos indicados por especialistas, disputa pelo nome champagne: um panorama do consumo e da produção do ‘borbulhante’ nacional, que nos últimos anos cresceu no gosto popular e conquistou as praias.
No Rio é só ir a praia e escutar “picolé da Morena!”. Outro
vendedor oferece um queijo coalho na brasa, quentinho e proibido. Sob o
sol a pino, em plena sexta-feira no Posto 12, no Leblon, Ruan Nemeczyk,
de 27 anos, caminha apenas com um sorriso no rosto e isopor a tiracolo. O
que será que ele vende?
— Se eu tivesse esse
dom de criar bordão que eles têm... Mas prefiro apresentar o produto com
calma para o cliente — afirma ele, paramentado com blusa de manga
comprida e proteção UV, boné, óculos escuros e pegador vermelho de
silicone. — Roupa de árabe não combinaria, né?
A
cerimônia tem motivo. O produto vendido ganhou as areias e a mesa
brasileira de mansinho, perdendo o nariz empinado e o sotaque gringo. O
espumante nacional cresceu em qualidade e volume de vendas, superando
rótulos estrangeiros. Deixou de estar restrito a eventos especiais e
passou a acompanhar banho de mar, churrasco e outras comemorações mais
prosaicas.
Morador da Mangueira, Ruan criou há
um ano o chandonlé, nome de batismo para o sacolé de Chandon. Ainda que a
técnica de bater o espumante com leite condensado e frutas congeladas
possa ser considerada um sacrilégio com as delicadas borbulhas da
bebida, a invenção tem feito sucesso nas areias do Leblon. O carioca
deixou seu emprego de contador e investiu na veia empreendedora: lançou
delivery, criou carrinho para casamentos e festivais de food truck e
abre no próximo mês uma champanharia no Cadeg, em Benfica.
—
O Rio sempre foi a cidade da cerveja, mas percebi que isso começou a
mudar na praia. O espumante é uma bebida refrescante que combina com
nosso clima. O carnaval confirmou isso. A gente saía dos blocos zerados e
as pessoas pediam para voltar — conta ele, que não revela o volume de
vendas na folia, mas diz que foi preciso contratar dez vendedores.
Só podia dar em dobradinha
A
dobradinha carnaval e espumante é o mote do bloco Espumas e Paetês, que
ocupa há sete anos uma praça em Laranjeiras no Sábado Magro, que
antecede o sábado de carnaval. A analista de sistemas Lilian Rodrigues
fundou a agremiação depois de fazer cursos de enologia e participar de
um grupo de degustação. As marchinhas são entoadas por um coral à capela
e cada folião uniformizado com a camiseta do bloco ganha uma taça para
uma dose de espumante. Os integrantes podem levar suas garrafas e gelar
num isopor comunitário.
— Já tivemos até 800
pessoas, mas neste ano não conseguimos nos reunir, apesar das queixas
dos foliões. É cada vez mais difícil colocar o bloco na rua. Os blocos
têm patrocínio de cervejaria. Não tem como competir. Mas o nosso é o
único em que o banheiro fica limpo e sem fila — brinca. — Se vou à praia
no fim de tarde, levo meu espumante gelado. É uma bebida que cai bem
com todos os ambientes do Rio.
Entre os 309
quiosques administrados pela Orla Rio, 70 oferecem espumante em seu
cardápio, a maior parte concentrada no trecho Copacabana-Leme. Do outro
lado do calçadão não é diferente. O cinco estrelas Copacabana Palace,
por exemplo, lançou no início do mês seu rótulo próprio de espumante
brut e rosé, produzido na Serra Gaúcha, para ser servido no brunch do
restaurante Pérgula, aos domingos.
— Cada vez
mais o turista e o carioca estão procurando sair da mesmice de chopes e
caipirinhas — diz Daniele Barreto, dona do quiosque Coisa de Carioca,
que fez campanha de bonificação entre os funcionários para quem mais
vendesse a bebida.
Crescimento constante
Segundo
o Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), desde
2015, o número de estabelecimentos que incluiu espumantes no cardápio
cresceu 15% no estado. Fundada em 2003 em Porto Alegre, a Ovelha Negra
foi a primeira champanharia instalada no Brasil. A ideia dos sócios,
todos leigos até então no ramo de bares, surgiu durante uma viagem a
Barcelona, inspirada nas caves locais. Hoje, a filial no Rio, em
Botafogo, tem 80% da carta dedicada a rótulos nacionais.
—
Sempre achamos que o espumante brasileiro tinha mais potencial que o
vinho. Mas na época até as próprias vinícolas duvidavam de um projeto
assim — conta o sócio Daniel Giacoboni.
Os
vastos campos de videiras, com roseiras nas extremidades para servir de
indicador contra pragas, poderiam ser confundidos com vinícolas na
França ou Itália. Mas em meio à paisagem comum ao mundo dos vinhos se
destaca a imponente araucária, cartão-postal da região Sul do país,
responsável por 90% da produção nacional.
É
nesse cenário que está em curso uma pequena revolução, a segunda de que
se tem notícia ali: se nos anos 1970 e 1980 as vinícolas gaúchas
adaptaram a produção do vinho de mesa para os finos, agora, pouco a
pouco, vão apostando mais na produção de espumantes do que na de tintos,
rosés e brancos.
Na vinícola Don Giovanni, em
Pinto Bandeira, a produção de espumantes já superou a de tintos. A
localidade na Serra Gaúcha é considerada “o” solo para espumantes,
devido à altitude (700 metros acima do mar) e ao solo drenante de origem
vulcânica.
— Tecnicamente, viu-se que a cada
safra conseguimos colher uma boa uva para espumante. Historicamente, não
tivemos safras ruins para base de espumante. Para vinho, temos duas a
três safras boas por década. É a vocação do solo. Todo ano, a uva atinge
a graduação de açúcar e a acidez perfeita — explica o gerente Daniel
Panizzi.
Segundo levantamento do Instituto
Brasileiro do Vinho (Ibravin), os espumantes de vinícolas gaúchas
tiveram aumento de vendas de 11,9% em 2015, com 18,7 milhões de litros.
Entre os denominados moscatéis, com teor de açúcar mais elevado, o
percentual foi ainda maior, 15,8%. Já nos tintos e brancos, viu-se um
movimento contrário: as vendas ficaram praticamente estagnadas, com alta
de 0,9%, totalizando 227,3 milhões de litros. Ainda que o resultado não
se repita em 2016 em função do aumento dos custos de produção, da
redução no volume da safra e das mudanças na tributação, a tendência
está estabelecida.
— Hoje, é muito mais
interessante vender espumante do que vinho. O limite de preço dos vinhos
é o estabelecido por Chile e Argentina. Com uma incidência de impostos
maior e um custo de produzir também, a gente não consegue competir em
preços com nossos vizinhos. Acontece que o teto de preço dos espumantes é
o que vem da região de Champagne, na França, que é bem mais alto. Ainda
temos muito o que crescer — aponta Daniel Geisse, primogênito da
família Geisse.
A vinícola, também localizada
em Pinto Bandeira e eleita “a melhor do Novo Mundo” pela revista “Wine
Entusiast”, um Oscar do setor, registrou R$ 12,5 milhões de faturamento
em 2015. E hoje tem três vezes mais reservas de compra do que é capaz de
produzir.
Mas não é uma questão de simples
matemática. Diferentemente do que acontece com os vinhos, os espumantes
venceram o preconceito do rótulo made in Brazil. Cerca de 80% do consumo
nacional dos borbulhantes vêm de vinícolas nacionais, enquanto no vinho
fino a situação é inversa, com apenas 20% de produtos locais
respondendo pelo consumo total. Os prêmios conquistados por casas como
Geisse, Valduga e Salton — líder de vendas no país há dez anos, após
desbancar a Chandon do posto com produtos mais baratos — alçaram o
espumante canarinho ao mesmo nível de qualidade de seus pares gringos. E
o enoturismo da região ajudou a democratizá-lo dentro do país.
—
A aceitação vem da qualidade. E, nesse particular, é preciso destacar a
contribuição de alguns enólogos no desenvolvimento do espumante
brasileiro: Adolfo Lona (argentino), Mario Geisse (chileno) e Philippe
Mével (francês, da Chandon). Embora estrangeiros, todos vivem há mais de
20 anos no Brasil e interpretaram com maestria o grande potencial do
país para a elaboração de espumantes de qualidade. Outro fator é o
preço: todas as vinícolas do Sul produzem espumantes, e a saudável
concorrência manteve os preços num patamar razoável para esse tipo de
produto. Não se pode dizer o mesmo para os tintos — analisa Célio Alzer,
sommelier e consultor de vinhos.
Espumante em alta: Do
sorvete na praia ao drinque no hotel cinco estrelas, o ‘borbulhante’
nacional nunca esteve tão em alta - Fernando Lemos
O
que se encontrou na Serra Gaúcha foi vocação para espumantes, o chamado
terroir: clima frio, chuvoso, solo com drenagem e com pouca insolação
compõem características adversas para tintos, mas são vantagem no caso
dos borbulhantes ao criar uma acidez elevada. É basicamente o que
acontece em Champagne.
— O espumante é vinho, e
vinho é um produto da terra. Não é um produto turístico para ficar
passeando pelos mares. O brasileiro tem que assumir que o vinho é um
patrimônio desse país. Não é um produto regional, como hoje ele está
interpretado — defende Rinaldo Dal Pizzol.
A
onda dos brasileiros também chegou a reboque do onipresente “raio
gourmetizador”. É que os rótulos nacionais são mais frutados, leves e
com menor nível de açúcar do que o tradicional champanhe.
—
Dos vinhos, o espumante é um dos mais versáteis. É possível fazer toda
uma refeição só acompanhado por eles, embora a graça seja ter variedade.
Em dúvida, uma taça de borbulhas resolve — sugere Luiz Horta, colunista
do GLOBO.
Na disputa para usar o nome champagne, uma empresa se reinventa
Mais
de dez mil quilômetros separam Garibaldi, no Rio Grande do Sul, e
Champagne, na França. Mas ambas as cidades têm um orgulho em comum: o
champanhe. É por aqui que se produz o único espumante a levar o nome da
região francesa, protegido por uma Indicação de Procedência. Explica-se:
em 1974, vinícolas francesas entraram com uma ação contra quatro
empresas gaúchas que levavam o termo no rótulo. O Supremo Tribunal
Federal (STF) rejeitou a ponderação, e as vinícolas continuaram com a
denominação. A única em atividade é a Peterlongo, com o slogan “O 1º
Champagne do Brasil”.
A bebida começou a ser
comercializada pelo fundador, Manoel Peterlongo, em 1915. Ganhou
notoriedade com Getúlio Vargas nos anos 1930, quando se tornou a bebida
das cerimônias oficiais do governo federal, figurando de batismos de
navios ao jantar de boas-vindas da Rainha Elizabeth II.
O
declínio aconteceu nas décadas seguintes, com a abertura do mercado a
espumantes internacionais e mudanças no comando da empresa que
priorizaram produtos menos nobres. A marca perdeu o glamour. Até o ano
de 2002, quando a página começou a ser virada. O paulista Luiz Carlos
Sella, ex-taxista que fez fortuna assumindo empresas em dificuldade e as
vendendo posteriormente, comprou a vinícola e retomou o foco nos
espumantes premium. Hoje, apenas 0,5% da produção, que inclui sucos,
vinhos de mesa e espumantes estilo charmat, leva no rótulo Champagne. A
consultoria de um enólogo, cujo nome é guardado ainda a sete chaves, vai
reformular a linha de produção.
— Quando
entrei, o endividamento era maior do que o patrimônio. Meu objetivo era
ficar até os 100 anos da empresa (em 2015). Mas a história não tem preço
— afirma Sella.
Fonte Ela
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