domingo, 6 de maio de 2018

Fora, alisamento!

                                     Resultado de imagem para Pérola Gonçalves cabelo afro

Ter cabelos crespos ou cacheados transformou-se em um movimento estético e até mesmo político, de empoderamento feminino. E cada vez mais jovens abandonam a rotina de alisamento, ganham autoestima e valorizam sua identidade negra.

Pérola Gonçalves, de 24 anos, é uma das jovens que reforçam o movimento de mulheres que abandonaram a rotina de alisamento e, hoje, ostentam seus cabelos crespos e cacheados, fenômeno cada vez mais comum. No entanto, até deixar de lado os fios quimicamente tratados, a estudante de produção editorial trilhou um longo caminho. Levada pela mãe ainda pequena, começou a fazer escova para soltar os cachos.

 “Até a adolescência foi isso. Eu fazia relaxamento, mas eu nunca andei de cabelo solto porque não ficava bom. Eu sempre andava de coque e parecia um personagem de desenho animado”, disse em tom de brincadeira.

Por volta dos 17 anos, frequentou um salão especializado em cabelo crespo e cacheado. Como resultado, a madeixa até ficou baixa, mas o coro cabeludo estava ferido em razão das substâncias usadas no procedimento. Em 2012, cansada das queimaduras e de gastar dinheiro, Pérola deixou de lado qualquer tipo de tratamento químico e entrou em transição capilar. Momento emblemático para a maioria das crespas e cacheadas, a transição representa uma mudança na qual abandona-se a chapinha para deixar o cabelo crescer naturalmente.

Não raro, o processo é difícil e delicado. As mechas adquirem múltiplas texturas, ficam frágeis, exigem cuidados. Neste momento, toda ajuda é bem-vinda, inclusive a virtual. Basta uma rápida pesquisa na internet para encontrar grupos dedicados ao assunto, com nomes que vão de “Transição Capilar: liberte-se, você não está sozinha (o)” até “Transição Capilar: voltando aos cachos”. Em alguns, o número de membros passa de 100 mil pessoas. Foi em um desses grupos que Pérola conheceu o Big Chop (grande corte).

A técnica consiste em cortar a parte do cabelo que ainda preserva química, deixando apenas fios naturais. “Você molha o cabelo, vê onde está relaxado e onde está natural e corta no entremeio. Aí eu fiquei muito tempo nisso. Hidratava o cabelo e ficava: ‘Ai, meu Deus! Como está bonito o meu cachinho em cima, mas está todo zoado em baixo´”. Apesar da hesitação, Pérola reuniu coragem e cortou o cabelo.

Expulsa da casa

Os primeiros dias exigiram jogo de cintura. Ela só saia com uma faixa no cabelo e lembrou ter lidado com olhares na rua. Contudo, o episódio mais desagradável aconteceu na casa que alugava.  Ainda na transição capilar, Pérola perguntara para a proprietária do imóvel como o cabelo estava. “Ela fez uma cara muito estranha. Eu me senti mal e prendi o cabelo de novo” lembrou. Algum tempo depois, já com o cabelo cortado, Pérola foi expulsa da casa.

Apesar de todos os aluguéis estarem em dia, a mulher pediu que a estudante desocupasse o lugar no mesmo dia. “Era uma sexta-feira e ela queria que eu fosse embora. Eu disse que não tinha dinheiro para ir embora. Eu tinha que ir para Saquarema. R$ 20 o ônibus. Ela falou: ‘Eu pago para você ir.’” 

Quando a situação aconteceu, Pérola disse não ter atribuído o motivo da expulsão ao cabelo ou ao racismo, mas hoje vê com outros olhos. “Na época, não reparei, mas só pode ter sido isso. Não tinha feito absolutamente nada. O meu crime foi ter cortado o cabelo”.

Apesar do incidente, o crespo da jovem floresceu. Ela, que na infância só andava com o cabelo preso, ostenta hoje o black volumoso com que sempre sonhou. As mudanças na autoestima também foram perceptíveis. Assim que abandonou a química capilar, passou a se achar bonita de imediato. Outro aspecto importante é a sensação de liberdade que sente agora que já não depende dos tratamentos químicos. “Eu não me sentia dona do meu cabelo. Me sentia uma refém dele. Conforme eu fui sendo dona do meu cabelo, eu me senti dona de mim”.

Aliado

Ao lado da autoestima, o cabelo pode ser um aliado quando se trata de valorização racial e identitária. É o que afirmou a antropóloga Lídia Matos, de 27 anos, cuja dissertação de mestrado discutiu o modo como o cabelo pode estimular discussões ligadas à identidade negra. “Fiz uma análise sobre o ciberespaço e foquei em duas blogueiras de beleza para tentar ver como esse discurso da transição capilar estava indo além da questão estética.” Os resultados evidenciaram que muito mais que estética, cabelo é política.

Matos foi a encontros de crespas e cacheadas em Aracaju, eventos que em um primeiro momento buscavam discutir assuntos ligados ao cabelo. No entanto, à medida que aconteciam, adquiriam um caráter cada vez mais político. “Algumas pessoas que começaram a participar desses encontros por conta do cabelo passaram a ver pautas do movimento negro como coletivos e começaram a se organizar dentro de um outro modo. Esse cabelo colocava as pessoas em contato com algo mais, que não só estética, que não só autoestima, mas algo que também é político”.

A partir de relatos, a estudiosa percebeu que o cabelo crespo e cacheado provoca reações, sejam positivas, sejam negativas. Pérola sente na pele essas reações extremadas. Ora perguntam se o cabelo é realmente dela, ora pedem para tocá-lo. Perguntas como essas são tão comuns para mulheres negras que o assunto reverberou na música americana.

Em 2016, a cantora Solange Knowles, irmã de Beyoncé, lançou uma canção inteira dedicada ao tema, acendendo um debate sobre uma das facetas mais sutis do racismo: a tentativa de fazer do negro um ser exótico. Nos versos de “Don’t Touch My Hair” (Não toque em meu cabelo), a cantora pede que não toquem em sua “coroa”, e avisa: Você sabe que esse cabelo é o meu melhor/ Levei tempo para assumi-lo / Mas este aqui é meu.

Histórias parecidas

Quando o assunto é cabelo e estética, mulheres negras costumam ter histórias muito parecidas, que normalmente envolvem um longo processo de autoaceitação e redescoberta identitária. Por vezes, o cabelo é apenas o começo, o início de algo maior. Foi assim para a youtuber Gabi Oliveira. Dos quatro aos 21 anos, a jovem contou ter usado diferentes formas de transformação capilar. Foram relaxamentos, permanentes, progressivas, extensões e alisamentos. Até que no dia 27 de dezembro, Gabi percebeu que havia algo errado.

Era seu aniversário de 21 anos e a youtuber estava insatisfeita com seu cabelo. Ligou para uma cabeleireira e pediu que a raiz fosse retocada. Depois de alguma insistência, a profissional aceitou ir até a casa da jovem. Enquanto a cabeleireira alisava as mechas e as amigas a esperavam na sala, Gabi se questionou. “Por que eu estou fazendo isso? Não é normal. Não é normal estar aqui, no dia do meu aniversário, gastando quatro horas do meu dia, com gente na minha casa. A ficha caiu do nada. Eu estou em uma prisão. Isso daqui me aprisiona.”

Nascida no Rio de Janeiro e formada em relações públicas, Gabi é uma mulher de sorriso fácil e olhos cor de azeviche. Seu canal nasceu em 2015 a partir da necessidade de compartilhar aquilo que aprendia sobre estética negra e questões raciais. O modo que encontrou de saber se o conteúdo era acessível foi compartilhar os vídeos com a mãe e as tias. “Quando eu criei o canal, uma das minhas prioridades era que elas entendessem o que eu falava. E eu faço isso até hoje. Mostro para a minha mãe, para as minhas tias e pergunto: ‘Vocês estão entendendo’? A população negra no Brasil é igual à minha mãe e às minhas tias. Se elas não estão entendo, então não faz sentido para mim”.

A julgar pelos mais de 200 mil seguidores, Gabi está sendo entendida muito bem. Em razão de todo esse sucesso, uma grande empresa de produtos capilares a chamou para ser embaixadora da marca. “O cabelo crespo sempre foi ligado a algo feio, exótico, que era peruca de carnaval, uma coisa para as pessoas zombarem. Quando eu vou me vincular a alguma marca, eu penso muito em criar uma referência positiva em relação a esta estética”. Gabi destacou também a baixa representatividade do cabelo crespo em um mercado acostumado a evidenciar os cachos mais abertos.

Fonte Folha


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