Isso é bom ou ruim? Nova dieta dos brasileiros mistura comida saudável e fast-food. Brasil é um país com o prato dividido. Comemos cada vez mais refeições prontas e gordas. Mas uma nova dieta, que mistura comida de regime a fast-food, ganhou a mesa dos brasileiros
Quando tinha 22 anos, Victor Giansante decidiu que queria vender saladas. Nascido em uma família de usineiros do interior paulista, ele não tinha concluído a faculdade de administração quando surpreendeu os mais próximos com a ideia. “Viviam me perguntando: ‘Você acha mesmo que alguém vai querer almoçar alface?’”, diz Giansante, nove anos depois, sentado em uma sala de reuniões espaçosa na sede da empresa que criou, num sobrado próximo ao estádio do Pacaembu, em uma região nobre de São Paulo.
Em 2007, Giansante e dois sócios trouxeram ao Brasil uma rede americana de restaurantes cujo carro-chefe eram saladas elaboradas para todos os gostos. Especializada em alimentação saudável, a empresa ainda era uma novidade nos Estados Unidos. A ideia vingou – à primeira loja, seguiram-se outras 29. Os brasileiros introduziram itens nacionais ao cardápio. Neste ano, decidiram cortar o vínculo com a empresa americana e criar a própria marca. Giansante diz que não se surpreende com o sucesso da ideia: “As pessoas se preocupam mais com o que comem. Quando começamos, havia uma demanda entre as classes A e B por esses produtos. Nós surfamos nessa onda”.
O crescimento de negócios como o de Giansante se ampara na expansão de uma fatia da população urbana que tenta comer de forma saudável, mas não tem tempo para comprar e preparar o próprio alimento em casa. É uma população cuja existência já intuíamos e que agora aparece nas estatísticas. Quem primeiro percebeu sua existência foi a nutricionista Letícia Rocha. Letícia é uma carioca que dá aulas na Fundação Oswaldo Cruz e se concentra em estudar os hábitos alimentares dos brasileiros. Ela e sua equipe analisaram a dieta de 15 mil pessoas, entre 30 e 70 anos, que moravam em seis grandes capitais do país. Descobriram que o brasileiro urbano mantém quatro diferentes formas de comer que variam com a renda e o nível de instrução.
O grupo mais numeroso adota o que os pesquisadores chamaram de dieta tradicional. Eles representam 46% da amostra de Letícia e a maioria concluiu o ensino médio. São os brasileiros que comem itens típicos da dieta nacional, como arroz com feijão. Nos últimos anos, eles incorporaram mais alimentos industrializados ao cardápio. E passaram a comer carnes quase diariamente. São hábitos novos. Em parte, surgiram porque a população enriqueceu. “Uma população com mais dinheiro quer comer itens que lhe deem mais status”, diz Letícia.
Terrorismo nutricional
Foi a fatia seguinte da população, porém, que surpreendeu os pesquisadores – 25,7% dos brasileiros que vivem em grandes cidades mantêm dietas ricas em frutas e vegetais frescos. São artigos que rareiam no prato do restante da população, mais caros que a comida encaixotada, como refeições congeladas e bolos prontos. Esse brasileiro tem dinheiro e boa instrução: a maioria concluiu ensino superior e pós-graduação. São eles os clientes de Giansante. Sem tempo para cozinhar, comem em restaurantes por quilo e redes especializadas.
Não são obcecados pela boa forma: no cardápio rico em frutas da estação, cereais integrais, hortaliças e água de coco, há espaço para fast-food. Pizzas, hambúrgueres e coxinhas aparecem na dieta, diária ou semanalmente. A aparente contradição não é necessariamente ruim. “Significa apenas que essa população mantém uma dieta variada”, diz Letícia. E que gosta de ter sua comida em mãos rapidamente. Esses dois principais grupos evidenciam uma mesma transformação que se aprofunda no Brasil desde os anos 1980. São pontas opostas de um fenômeno que os nutricionistas e epidemiologistas chamam de transição nutricional.
O termo foi cunhado pelo economista americano Barry Popkin no início dos anos 1990. Popkin tentava descrever as principais mudanças nas dietas humanas desde o desenvolvimento da agricultura, há 12 mil anos. Segundo ele, as formas de comer de uma sociedade seguem uma espécie de linha evolutiva: o progresso técnico permite que passemos de uma fase de escassez de alimentos para a de abundância. Nesse ponto, a comida fácil cria multidões de pessoas com problemas como obesidade e hipertensão.
No passo seguinte, as sociedades tentam comer de maneira mais saudável. O maior mérito de Popkin foi o pioneirismo de chamar a atenção para como nos países de renda média – como China e Brasil – a urbanização e a industrialização faziam dietas tradicionais abrir espaço para alternativas ricas em açúcar, gordura e sódio. Nos países de alta renda, essa transição acontecera já na primeira metade do século XX. Hoje, nesses lugares, começam a se insinuar novas formas de comer, que reincorporam alimentos frescos e frutas. É uma espécie de reação à deterioração da dieta ocidental. “Ela é encabeçada por uma elite com acesso a conhecimento e dinheiro”, disse Popkin a ÉPOCA. “Um grupo que começa a surgir também nos países mais ricos da América Latina.”
No Brasil, os pratos mudaram conforme mudavam a renda e a maneira de trabalhar. “Toda mudança na dieta tem fundamento econômico”, diz Walter Belick, especialista em segurança alimentar da Universidade de Campinas. O Brasil da segunda metade do século XX assistiu ao crescimento da população urbana e à entrada da mulher no mercado de trabalho. A renda das famílias aumentou – e o tempo para cozinhar, uma atividade que era usualmente desempenhada pelas mulheres, tornou-se escasso.
Comemos mais alimentos processados porque as refeições prontas se tornaram alternativas práticas a quem não tinha tempo, mas tinha dinheiro. A mudança veio acompanhada, a partir do final dos anos 1980, pela maior produção de gado e aves de corte. O Brasil se tornou o segundo maior exportador de carnes do mundo. A proteína animal virou artigo difundido em nossas refeições. Ainda nos anos 1990, a indústria alimentícia aumentou a atenção dada aos países de renda média. Àquela altura, 60% da alimentação dos ingleses e americanos baseava-se em itens processados – tinha alcançado o que os especialistas consideram o ponto de saturação, quando não é mais possível aumentar a parcela de processados na dieta. No Brasil, essa porcentagem ronda a casa dos 30%. É onde a indústria acredita poder crescer.
Sentimos as consequências na balança. Em 1975, 3% dos homens brasileiros eram obesos. Em 2014, essa fatia tinha avançado para 17%. Seguindo o exemplo dos americanos – e mais precocentemente que eles –, o brasileiro com informação e dinheiro reagiu. “Trabalho em clínica há mais de 20 anos”, diz Lara Natacci, nutricionista especialista em comportamento alimentar. “Hoje, as pessoas chegam ao consultório informadas sobre que tipo de dieta querem.”
O governo também teve papel nessa mudança de hábitos, ao promover a importância da alimentação saudável para prevenir doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. “No Brasil, somos vanguardistas nas intervenções de promoção da alimentação saudável”, diz Letícia, da Fiocruz.
O Guia Alimentar Brasileiro, um documento elaborado pelo Ministério da Saúde, é elogiado no exterior pela clareza: traz sugestões de alimentos para cada refeição, em lugar de informar quais nutrientes a pessoa deve consumir.
O mercado de alimentos saudáveis dá sinais animadores – o Brasil é o quinto maior consumidor do mundo de produtos desse gênero, segundo a consultoria Euromonitor. Hoje, a melhora ainda está restrita a poucos, capazes de pagar por comida mais cara e fresca. Caso as previsões de Pupkin, o teórico da transição nutricional, estejam certas, há duas rotas possíveis para a dieta do brasileiro nos próximos anos. Caso o país continue em crise, podem se difundir os hábitos ruins, de recorrer a alimentos processados e baratos, e sentiremos os efeitos danosos à saúde da população. Se os brasileiros retomarem o avanço de nível de renda e instrução ocorrido entre os anos 1990 e 2000, crescerá a parcela dos brasileiros com dieta melhor, mais diversificada e saudável.
Fonte Época
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