sexta-feira, 29 de julho de 2016

Bares de uma europa mais quente

Portugal, Espanha e o reencontro com o sabor dos botequins cariocas, na viagem feita por colunista de O Globo. Muito bacana para você ter uma idéia das suas férias.

Que tal um bilhar em Lisboa?


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Depois de nove meses viajando pelo mundo, visitando bares exóticos de todos os tipos, experimentando bebidas de diferentes qualidades e comendo petiscos das mais variadas tendências gastronômicas, nada melhor do que voltar para casa... Casa? Alto lá! Ainda estava na Península Ibérica. Faltavam alguns milhares de quilômetros para poder me refastelar no sofá de casa, ao lado da patroa.

Mas é que não dá para negar que rodar os bares, cantinas, bodegas, tascas, garrafeiras e comedorias de Barcelona, Madri e Lisboa tem, sim, um gostinho caseiro. Afinal, reside nas tradições patrícias e galegas a alma dos botequins mais cariocas. Viver essa ancestralidade in loco é um prazer em todos os sentidos, especialmente para o viajante boêmio. E mais ainda quando este é o último trecho da viagem...

Depois de Portugal e Espanha, tirei uns dias de folga em Paris, Cardiff e Londres, e desta última cidade peguei um avião — um dos quatro únicos em mais de 60 mil quilômetros de peripécias por 38 países — e finalmente voltei para o Rio. Minha Volta ao Mundo em 80 Bares, caro leitor, tinha chegado ao fim.

Barcelona: do sofisticado à velha boemia popular

Barcelona, o coração da Catalunha, não é conhecida só pelas curvas orgânicas, coloridas e misteriosas da genial arquitetura de Gaudí. A cidade na beira do Mediterrâneo também é famosa por tesouros como a cozinha molecular do chef Ferran Adriá e a mixologia inovadora do mestre dos bartenders Javier de las Muelas, só para citar dois exemplos. Alta gastronomia, drinques de primeira, arte, arquitetura...

A cidade é um sonho para quem a visita em busca de cultura e experiências sofisticadas. O que não significa que a boa e velha boemia popular fique em segundo plano por aqui. Muito pelo contrário. Em terras barcelonesas, bodega boa, velha, barata e divertida é o que não falta. Algumas são capazes até de deixar muito boêmio brasileiro com os olhos marejados, tal é a semelhança que guardam com alguns de nossos balcões mais queridos.

Sem talher, nem frescura

Uma delas é Can Paixano, bar que, pode-se dizer, é uma espécie de primo do Cervantes, o clássico dos sanduíches da Prado Júnior. Primo ainda mais popular e democrático. Localizado perto da região portuária (vizinho à famosa Barceloneta), o Can Paixano é uma casa de vinhos e espumantes (uma “xampanyeria”, na língua catalã) que funciona também como loja.

Até seis da tarde, a frequência é de comportados fregueses em busca de rótulos locais e de outras regiões do país e da Europa. A partir daí, a bodeguita assume sua personalidade mais pitoresca: a de clássico bar portuário, especializado em tapas e sanduíches feitos na hora, com queijo manchego, “jamón serrano”, morcelas e outros embutidos. Tudo servido sem talher nem frescura, em singelos pratinhos, direto no balcão.

A bebida, consumida em doses industriais por uma clientela que mistura jovens, um bom número de gente mais velha e alguns intrépidos turistas, é vinho e espumante, claro. Cerveja, nem pensar. Mas à noite (só até as 22h em ponto, quando todos são gentilmente expulsos), a bebida é vendida em doses generosas, em simpáticas taças retrô, a preços de emocionar de tão baratos.

Com essa fórmula — que inclui sanduíches fartíssimos e igualmente baratos, carregados no patê de fígado, salames, presuntos e queijos — a festa é garantida. Mas é preciso quase gritar para se fazer ouvir, tamanho o zum-zum da turma que bate papo dentro do velho salão salpicado de garrafas vazias e pernas de porco penduradas.

Montse: bodega de 120 anos

Bagunça latina das boas se repete em outro ponto da cidade — desta vez a partir das 22h e sem hora para acabar — no Marsella. No centro do boêmio e multicultural bairro de El Raval, o Marsella é um dos mais antigos e decadentes bares de Barcelona. De fato, é decadente desde a inauguração, em 1820. Mas muito elegante. Especializado em absinto e outras bebidas pesadas, o que falta em comida sobra em alegria, despojamento e ambiente.

Os tetos descascados e os espelhos manchados remontam à época em que o salão era frequentado por Ernest Hemingway, quando o escritor americano esteve por lá cobrindo a Guerra Civil espanhola, nos anos 30. O absinto corre solto. Mas no maioria das bodegas espanholas, a bebida oficial não é vinho, cerveja ou absinto. É vermute. Nas mais típicas, o vermute de barril, servido sempre ao lado de simpáticas garrafas de sifão com água gasosa.

As bodegas em Barcelona são como os pés-sujos no Rio. Algumas sequer têm nome, mas quase todas têm um poder quase irresistível de atrair quem gosta de bar antigo. A maioria se espalha entre o Bairro Gótico, nas imediações do Museu Picasso, El Raval e o Barrio Chino, a área mais barra pesada da cidade, mas ainda assim relativamente segura e divertida.

Ali, por exemplo, pode-se esbarrar com preciosidades como a Bodega Montse, de mais de 120 anos, que funciona como uma máquina do tempo rumo à História de Barcelona e da cultura catalã, com suas paredes lotadas de recortes, fotos, cartazes e objetos antigos. Isso de um lado. Do outro é o paredão de barris de vermute que domina o lugar. A graça está em transitar entre eles, com um copo na mão e um pincho na outra. Mas com moderação, porque o vermute — com sua simpática azeitona — pega que é uma maravilha...
Madri: touros, vermutes e História

Em quase todos os dias do ano, Madri é um mar de turistas. Ou um rio, que flui entre o Museu do Prado, a Porta do Sol e a Plaza Mayor. Nesse vaivém de gente, lojas, restaurantes e uma plêiade de atrações, é preciso olho vivo para descobrir os genuínos botequins e fugir das armadilhas. O mais recomendável é se afastar do burburinho. Nem sempre dá tempo, é certo. Só que mesmo lá, no meio da confusão, verdadeiras pérolas da cultura boêmia espanhola estão à espera do visitante mais atento.

Uma delas se “esconde” nas barbas da Plaza Mayor, a principal atração turística da cidade, a poucos metros do pátio principal. E oferece uma inesquecível experiência pelos costumes da Andaluzia, a terra das touradas, no sul da Espanha. Os chifres e cabeças de touro, aliás, estão por toda a parte no estreito e caloroso salão do La Torre del Oro, o mais tradicional bar andaluz de Madri.

Resistindo ao generalíssimo

Mais impressionantes ainda são as fotos de touradas. Façanhas de toureiros — e chocantes imagens dos dias em que quem ganhou foi o touro — lotam as paredes. Dentro do balcão, atendentes orgulhosos não perdem a chance para divulgar os costumes de Sevilha em pleno coração de Madri. O caldo de piripi, típico andaluz, é servido de graça a quem chega, com tapas de frutos do mar e muito, muito presunto ibérico. Há uma parede deles, à espera do freguês, no fundo do bar. Irresistível.

A tradição andaluz do La Torre del Oro só não é maior do que o orgulho cidadão impregnado em outro bar bem próximo dali — este no quarteirão da Porta do Sol —, pouco notado por estrangeiros, mas que funciona como uma meca etílica, gastronômica e política para espanhóis de outras cidades, que adoram reverenciá-lo. É a Casa Labra, espécie de Bar Luiz madrilenho, onde fundou-se clandestinamente, em 1879, o Partido Socialista Operário Espanhol, que mais tarde viria a ser um dos centros da resistência civil ao regime franquista, nos anos 30.

A Labra é um paraíso para os amantes de vermute (lá servido no barril, fresquinho), mas também do chope e de umas tapas que lembram muito os petiscos brasileiros. Os bolinhos de bacalhau (leva batata, como aqui) estão entre os mais famosos de Madri. Mas são os pastéis, idênticos aos nossos e raros na Espanha, que geram as grandes filas na porta do bar. Elas só não são maiores que as aglomerações no balcão, onde garçons e clientes disputam a atenção dos bartenders por um copo de chope ou vermute. Um clima de saudável confusão, como só os bares espanhóis — e os cariocas — sabem nutrir.

Lisboa, atrás de fado, vinho, bacalhau e amor

A versão lisboeta das nossas despretensiosas rodas de samba na Lapa são as sessões de “fado vadio” nos tradicionalíssimos bares de Alfama e do Bairro Alto. Correr as vielas e ladeiras da capital portuguesa em busca das melhores apresentações é um costume que pode render a oportunidade de se relacionar mais profundamente com sua cena boêmia.

Pois que uma noite de fado numa tasca como a do Chico, que tem filiais nos dois bairros, é uma experiência inesquecível. As performances de músicos e cantores, quase sempre semi-profissionais, mas de talento indiscutível, são o ponto de partida para uma noite que pode ser regada a um bom vinho verde, um regional alentejano ou ainda algo das margens do Rio Douro... Além de delícias simples como morcela na brasa e “pastéis” de bacalhau (é assim que os lisboetas chamam os bolinhos).

Como a Francesinha, não há

Conhecer Lisboa sob a ótica da boemia e da gastronomia é um pouco como ler o parágafo acima. Não há um objetivo muito claro que não seja sair e caminhar — “a esmo”, como dizem os patrícios — em busca de maravilhas escondidas por trás de azulejos e portas de madeira. Que podem ser os pastéis originais da Antiga Confeitaria de Belém, desde 1837 pertinho da Torre de Belém e do Monumento aos Descobridores. Ou uma autêntica francesinha: apesar do nome, o sanduíche mais lusitano que há, feito com bife, linguiça, presunto, molho de tomate e queijo gratinado.

Conta-se que o prato foi ideia de um cozinheiro português que, depois de uma temporada em Paris, resolveu homenagear as mulheres francesas com uma comida que fosse ao mesmo tempo voluptuosa, cheirosa, farta e úmida. Uma das melhores francesinhas da cidade pode ser comida no bar O Tachinho, que fica a poucos metros de um outro símbolo de Lisboa: a Casa Fernando Pessoa, onde exposições e um centro de estudos, entre outros espaços, preservam a memória do poeta fingidor.

A alguns minutos de bonde dali, pode-se conhecer as novas maravilhas do recém renovado Mercado da Ribeira, que oferece uma viagem a todas as microrregiões gastronômicas e vinícolas do país. Logo acima do Ribeira, duas pérolas da boemia lusa: a Garrafeira Alfaia, no Bairro Alto, bar do simpático Pedrão, oferece o melhor bacalhau a Bráz que já comi na vida e a não menos instigante alheira de caça de Mirandela, com grelos salteados, feita para se comer gemendo.

Tudo harmonizado com uma seleção equilibrada de vinhos brancos, tintos e do Porto, servidos num clima de boteco brasileiro que é impossível não se sentir em casa. Para finalizar, Pedrão oferece uma prova dos melhores aguardentes e digestivos portugueses, entre os quais o Licor de Merda, que segue sendo o meu favorito. À base de leite, baunilha, cacau e canela, o licor nasceu (com este nome mesmo) em 1974, como forma de “homenagear” os políticos e militares que até então sustentavam a ditadura portuguesa, derrubada pela Revolução dos Cravos naquele mesmo ano.

Poucos metros abaixo da Garrafeira Alfaia, um bar feito para se permitir: a Pensão Amor, na subida da famosa Rua do Alecrim, no centro, é popular entre a juventude e por isso mesmo costuma virar boate após a meia-noite. A decoração mescla inspirações clássicas com obras românticas e objetos tão contemporâneos que flertam com a bizarrice. Apesar da boa oferta de cervejas artesanais, a Pensão Amor aposta mesmo na coquetelaria, com misturas coloridas e de cunho afrodisíaco. Uma pitada da Lisboa moderna, para ninguém dizer que o relato dessa Volta ao Mundo em 80 Bares é coisa de coroa careta. Pelo menos, não tanto...

Os dois últimos trechos da minha volta ao mundo, entre a França, a Inglaterra e o País de Gales, foram os mais turísticos da viagem. Pela primeira vez em nove meses, não me dediquei a incursões diárias a bares e botequins. Fiz o que todos os turistas comuns fazem: museus, monumentos, parques, teatros, restaurantes, cafés e... bares?! Oh, meu Deus, lá vamos nós de novo!

Paris: rumo à boemia juvenil

Paris tem a sua Lapa, e não me refiro a Montmartre e Pigalle, que trouxeram ao mundo os shows de strip-tease e outros marcos hedonistas. Infelizmente, uma noite no café Le Chat Noir contemporâneo não é mais a mesma coisa de quando Pablo Picasso por lá desenhava nos guardanapos para pagar as contas, ao lado de um Toulouse-Lautrec caindo de bêbado se enfiando debaixo da saia das dançarinas de cabaré.

O café é um dos endereços icônicos da boemia romântica do século XIX que viraram atrações um pouco duvidosas no meio do baixo meretrício turístico de Pigalle. Mas tomar um vinho no Chat Noir — respirando um pouco do ambiente onde Debussy se apresentava em começo de carreira — antes de subir as vielas e ladeiras de Montmartre para jantar, ainda é uma opção digna.

Aliás, uma opção tão digna quanto, já lá em cima, pedir uma massa e um vinho nacional no La Taverne de Montmartre, uma casa que remonta à Idade Média e ainda preserva o forno onde, por séculos, eram forjados estribos e freios de cavalos.

Mas a Lapa contemporânea de Paris — que reúne jovens, boemia e muita música — fica nos arredores da estação do metrô de Parmentier, no bairro de Folie-Méricourt, bem próximo do Bataclan, a mítica casa de shows que sofreu o infame atentado terrorista ano passado. Ali os botequins se multiplicam, no clima do improviso e criatividade que só os bares latinos são capazes.

Por lá pode-se começar a noite tomando um drinque no L’Orange Mécanique (que do nome ao cardápio, passando pela decoração e pela trilha sonora, homenageia o filme clássico de Stanley Kubrick) e terminar em meio às paredes semidestruídas e pichadas do Au Petit Garage Boucherie, um típico pub parisiense, mas muito mais descontraído e caótico que seus similares ingleses. Nas mesas, a turma nem bebe muito (outra diferença flagrante entre os boêmios franceses e ingleses). Mas canta, abraça, beija, ri e conversa muito. Ah, les jeunes...

País de Gales 2 x 1 Inglaterra

Ainda faltava dois meses para a Euro 2016 começar quando circulei por entre os bares de Londres e Cardiff, a capital do simpático (e agora mais famoso) País de Gales, que abiscoitou uma inédita semifinal no torneio. No entanto, assim como a torcida mundial ficou encantada com o futebol dos galeses — e um tanto aborrecida com o mais-do-mesmo apresentado pelos ingleses — eu também confesso que, no meu placar, a boemia galesa me pareceu mais divertida que a dos seus poderosos vizinhos.

É claro que dizer que os pubs londrinos são mais-do-mesmo seria uma cavalar injustiça. A cena boêmia à beira do Tâmisa guarda surpresas e um sem-fim de novidades. A última delas é a febre do gim: antigas e novas destilarias se espalham pela cidade, fabricando a bebida mais popular da Inglaterra com requintes de sofisticação, à vista dos clientes, e a servindo em opções de drinques que deixariam James Bond na dúvida se escolheria mesmo “apenas” um dry martini. Um desses locais é o City of London Distillery. Encravado no centro da cidade desde 2012, a destilaria trouxe de volta ao coração de Londres uma tradição que estava perdida há mais de 200 anos: bares fazerem seus próprios gins. Não por acaso, é hoje uma das mecas dos amantes da bebida na cidade.

Mas Cardiff, caro leitor, Cardiff é outra história... Para começar, a cidade é um dos paraísos das despedidas de solteiro na Europa. O preço da bebida, mais em conta que no resto do Reino Unido, atrai ingleses, escoceses e irlandeses para farras que se estendem madrugada adentro nos finais de semana, aquecidas por um outro fator importante: a proliferação dos cassinos. Eles estão em cada esquina, estimulando a turma a beber. Não é dos ambientes mais salutares, reconheço, e é comum ver a garotada largada pelo chão nas manhãs de sábado e domingo, especialmente no verão. Mas os bares são fantásticos, fazer o quê?

Um deles reunia, no dia em que lá estive, um punk de cabelo moicano, um homem vestido de Papai Noel estilizado, um desempregado e um executivo impecavelmente bem vestido conversando em volta de diversos pints de cerveja. Tratava-se do The City Arms, o mais antigo watering hole da cidade. O bar, que é considerado um dos 30 melhores de todo o Reino Unido, só vende cervejas fabricadas no País de Gales e é um dos expoentes da Campaign for Real Ale (Camra), movimento de consumidores que defendem a valorização das microcervejarias britânicas.

Calcula-se que, por conta da atuação cada vez maior das grandes cervejarias no mercado das artesanais, mais de cem pequenos fabricantes estejam fechando suas portas por mês no Reino Unido. Bares como o City Arms, e outros espalhados pelo pequeno país, seguram o bastão da resistência. Assim como no futebol, no mundo dos bares o País de Gales é o Davi combatendo Golias.
Serviço

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BARCELONA

Can Paixano. Carrer de la Reina Cristina 7

Marsella. Sant Pau 65

Bodega Montse. Arc Sant Agusti 5

MADRI

Torre del Oro. Plaza Mayor 26

Casa Labra. Calle de Tetuán 12

LISBOA

Antiga Confeitaria de Belém. Rua Belém 1.300

O Tachinho. Rua 4 de Infantaria 6D/E

Mercado da Ribeira. Avenida 24 de Julho 49

Garrafeira Alfaia: Rua do Diário de Notícias 125

Pensão Amor: R. do Alecrim 19

PARIS

Le Chat Noir. 68 Boulevard de Clichy, Pigalle.

La Taverne de Montmartre. 25 Rue Gabrielle, Montmartre.

L´Orange Mecanique. Rue Jean Pierre Timbaud 72, Folie Mericourt.

Au petit Garage. Rue Jean Pierre Timbaud 63, Folie Mericourt.

LONDRES

City of London Distillery. 22-24 Bride Lane, The City.

CARDIFF

The City Arms. 10-12 Quay Street, Castle Quarter.

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